Como se viveu a epidemia na comunidade portuguesa residente no estrangeiro ?

Como se viveu a epidemia na comunidade portuguesa residente no estrangeiro ? 

Semelhanças e diferenças com a comunidade em que se integra em França e em Portugal. 

As lições urgentes que tiramos da pandemia. 

Perante uma epidemia desta envergadura tentar aperceber alguma diferença na vivência e nas consequências do fenómeno na comunidade portuguesa e nas outras comunidades não é fácil determinar. 

Como perante a morte, as pequenas diferenças desaparecem. Somos seres humanos todos confrontados com o perigo de morrermos devido à contaminação pelo vírus qualquer que seja a nossa identidade. 

Neste contexto, proponho fazer numa primeira parte o que me pareceu ser significativo mundialmente e na segunda parte o que é mais especifico na comunidade portuguesa atraves das minhas consultas. 

I – A epidemia em geral. Consequência na população global. 

De maneira geral, do que nos apercebemos é de uma mudança brusca de referências, de maneira de viver e sobretudo de uma ameaça de morte da qual se deve ter cuidado tanto pelo nosso comportamento como pelo comportamento dos outros. 

Arriscamos de ser responsáveis da própria epidemia : da nossa morte e da morte dos outros seres humanos. 

Os confinamentos sucessivos tiraram-nos a liberdade de nos movimentar e de nos deslocar onde queriamos e quando o queriamos. O cumprimento das regras impostas pelo governo substitui-se à nossa vontade de fazer aquilo que entendiamos e quando o desejavamos fazer. 

A própria liberdade de pensar por si próprio foi perturbada tanto pelas informações contraditórias do governo que não dava mãos a medir como por uma certa perversidade dele que em vez de dizer os limites dos conhecimentos que tinham, afirmavam sem terem a certeza e logo a seguir desmentiam, contradizando-se sempre com o mesmo à vontade e sem se desculpar. 

As pessoas perderam muita da confiança que se deve ter no governo que se escolheu democraticamente. Os governantes, na maioria sem grande experiência tanto da vida (ter uma família, criar filhos, cuidar dos mais velhos, etc) como na liderança do poder político, nos impunham regras por vezes absurdas e contraditórias. Por um lado,obrigando a população a se submeter a essas regras e por outro lado permitindo-se por vezes não fazerem eles próprios o que impunham, sem darem o exemplo. 

Psicologicamente : 

– A dupla injunção de se ter um comportamento ou de se pensar uma coisa e logo a seguir com a mesma persuasão impor o seu contrário foi-se instalando na personalidade das pessoas que aos poucos já não sabiam o que é a verdade ou o fake news, o que é dito a sério e o que é para levar para a brincadeira . Esta perversidade manifesta uma certa manipulação das pessoas que as pode levar finalmente a aceitarem o que quer que seja dito pois elas não podem dar sentido às diretivas, submetem-se a elas e aderem subraindo-se à reflexão. Este comportamento com as pessoas leva-as a ficar perturbadas psiquicamemente por não conseguirem dar um rumo à vida delas ( as máscaras, a necessidade de vacinas, os interesses financeiros da indústria farmaceutica, os supermercados abertos e as pequenanas lojas fechadas em função dos mais ricos ou mais pobres).* 

– O encerramento dentro de casa obrigatório muitas horas de seguida em teletrabalho sem puderem saír do confinamento e muitas das vezes em espaços reduzidos levou a que dificuldades psicológicas se manifestassem tanto por acumulação como por falta de poder espairecer, ver os amigos, fazer outras atividades fora de casa. 

– Difficuldades subjacentes já existentes potencialmente apareceram de maneira espetacular devido à incapacadidade de ressorção dos conflitos no interior das famílias. Esses disfuncionamentos multiplicaram-se. 

– Os únicos espaços escolhidos pessoalmente que eram os centros de lazer, cinema; desporto e clubes fechados impediram as pessoas de terem tempo para eles e com as pessoas com quem gostavam de conviver fora de casa. Finalmente não puderam aproveitar do tempo disponível e de lazer para fazerem o que verdadeiramente gostavam e sem que fosse uma obrigação mas uma escolha de vida própria sem o objectivo de tirar proveito imperativo e financeiro. 

 

Pedidos de ajuda psicológica aparareceram com caracteres próprios : 

– Psicopatologias específicas de pacientes como a perversidade que normalmente não pedem ajuda. Obrigados pelas esposas, apareceram muitos homens que vinham de tomar consciência graças às mulheres e devido ao confinamento que se traduziam por conflitos exacerbidos, infedilidades e de confronto entre cônjuges. Por não haver a válvula de segurança que permite a saída e o desanuviar fora de casa, a distância aos familiares com quem se vive. 

* Nota : Observei pela primeira vez pacientes com falta de meios para pagarem as consultas por perca do trabalho e diminuição do salário. Muitos jovens que tinham pequenas rendimentos deixaram de os ter com o encerramento dos comércios e o confinamento.

 

–  Depressões mais evidentes e específicas ao confinamento que nunca teriam provavelmente desabrochado num contexto habitual. 

–  Revelação de atitudes no casal que até aí não se viam ou não tomavam a importância que agora era desmedida. Apareceram tipos de sintomas que foram a razão da mobilisação para as consultas sempre numa dificuldade de entendimento acrescida nos casais devido ao confinamento : Adições ao alcool, à pornografia, a drogas duras, prostitução…

 – Vários homens que sofrem de não saberem como ser hoje homem numa sociedade que evolui rapidamente mas também na crítica do se ser homem. Os homens portugueses talvez mais que os franceses sofrem da falta ou da diminuição da estima do seu estatudo. O confinamento veio perturbá-los na organização da vida que tinham e nos momentos de saída do domicílio para espairecerem. Confrontados continuamente um ao outro, casais explodem e os homens são vistos como infieis. Não podendo subtraír-se à imposição da esposa vêm consultar mas a pedido da mulher como pecadores que devem perceber porque razão pecaram. A meu parecer, porque lhes têm o sentimento que são infieis mesmo só através da pornografia, Ora não sendo a pedido próprio mas a pedido da esposa o tratamento não pode funcionar porque não há real adesão. Na maioria dos casos o paciente tenta encontrar razões suficientes para não continuar, não se pôr em causa e fazer a introspecção necessária à psicoterapia. Acabam por se convencer e dizer à companheira que a terapia não é adaptada às suas necessidades ou ao seu caso. Não se pode saber o que estes casais e pessoas pervertidas vêm a ser mais tarde. O que pode acontecer de mais provável é que efetivamente como a situação é intolerável para a esposa esta venha a separar-se deixando o marido e a família num grande marasma. 

II — Aspectos psicológicos da epidemia na comunidade portuguesa. Certos problemas específicos na comunidade Portuguesa de França. 

Os pacientes portugueses com quem tive a ver durante este período de crise sanitária sem consideração específica sobre a duração da estadia, o sexo ou a idade das pessoas :

– Um aumento da angústia em geral. Depressaão especifica devida à imposição do confinamento. 

– Depressão agravada. Motivações menores para resolverem os problemas psicológicos por uma certa apatia e dificuldade em se aperceberem da gravidade da situação e ao mesmo tempo com problemas mais profundos. 

Pedidos de ajuda acrescidos da parte de portugueses que por saberem que sou Português e da mesma língua materna que a deles nos aproxima na compreensão para o desabafo das dificuldades de viver e de viver fora do país. Num país e numa sociedade que lhe é ou ainda continua a ser um tanto inospita por não sentirem ser a deles. 

As condições de exercício das consultas : 

– Logo que apareceu a pandemia um dos pacientes que mal falava o francês por ser dirigente de uma empresa internacional provisoriamente destacado em Paris resolveu parar com as consultas por ter receio de se pôr em situação de risco de ser contaminado. Abandonou interrompendo a psicanálise, trabalho que lhe era muito favorável de continuar para resolver difficuldades afetivas na família próxima e mais alargada. Pelo momento as consultas estão em ponto morto e está previsto retomá-las ao fim da epidemia. 

– No decorrer da epidemia um caso de alcoolismo, um homem que quase nada compreendia em francês e recusava de o falar tomou encontro através da esposa. A consulta foi solicitada pela sua médica francesa que mo dirigia por estar muito inquieta pelo seu estado de saúde e falta de comunicação. Ir consultar um psicólogo português foi-lhe fortemente aconselhado. Chegou com um dossiê voluminoso de tratamentos, exames e com a história da doença que dura desde há muitos anos. Explica-me que desde muito cedo, início da adolescência, bebe álcool. Agora apareceram graves problemas hepáticos já quase sem solução nenhuma. Mesmo assim não conseguiu continuar por falta de motivação e provavelmente para não ser desleal em relação aos pais que também tinham sido alcoólicos. . . 

– Um outro caso, este de cancro da mama, complicado que se tinha alastrado ao outro seio e agora à coluna. Inexplicavelmente para os encólogos. A ineficácia dos tratamentos quimioterapeuticos levou os médicos a aconselhar a senhora a ir consultar um psicólogo na sua língua materna. 

– Uma paciente deslocou-se a Portugal de proposito para visitar com seu pai o avô paterno que tinha sido hospitalizado. Conta-me com tristeza e vergonha que houve dificuldades de comunicação e de compreensão entre ela e os funcionários para ir ter com avô. O seu pai fala pouco. Ela é quem tem o papel de falar. A equipa medical vendo que havia uma visita para esse doente quiseram saber das condições de vida do doente na aldeia. Disseram que um vizinho era pago para assistir os avós para as necessidades do dia a dia, senão viviam sós. Ela sentiu vergonha de não saber falar bem e de não compreender o que se dizia. Nunca me disse que tinha vergonha do pai e que quem devia falar era o pai dela. Ele nasceu em Portugal ela jáem França.

 Visto terem vindo de propósito para ver o doente de tão longe, o médico disse à minha paciente que «dava alta» à hospitalização. Mas ninguém compreendia o que essa expressão queria dizer. Vergonha da parte da jovem neta e filha e portuguesa perante a incompreensão. Finalmente lá se perceberam mas punha-se a questão de quanto tempo essa permissão ia durar já que deviam regressar dali a três dias com passagens marcadas para França. Regressaram para a aldeia os três sem saberem o tratamento que o avô devia tomar. Não havia ninguém para tratar da doença dele em casa.

Angústia de o terem ido visitar sem saber o que dizer aos médicos. Vergonha de não saberem falar como os Portugueses de Portugal nem saber o que dizer, sem poder pôr perguntas. A paciente imaginou que provavelmente o avô ia ser chamado durante a semana outra vez para o hospital. Oficialmente essa organisacão não foi falada. Por causa da falta de compreensão da parte dos utentes mas também devido ao mal estar deles, da vergonha de não serem portugueses como os de lá e não compreenderem o que naturalmente todos percebem.. * 

– Um paciente que consultou por obesidade. Vive numa « loge » com a esposa nuns 20 metros quadrados. Fuma, bebe, nunca sai de casa a não ser para fazer as viagens de transporte de pessoas entre a França e Portugal. Como numa fronteira, sempre entre cá e lá e em sítio nenhum finalmente. Como um passador nas fronteiras, vai matar saudades do outro lado, traz azeite, laranjas, castanhas e o que for preciso de Portugal para quem lhe faz encomendas. Foi fazer o transporte de pessoas para Portugal numa altura em que era permitido. Já aguardavam há semanas. Ficou fechado em portugal um mês sem poder regressar. Ainda pensou saír de noite, às escondidas, mas era complicado porque as pessoas que tinham reservado a vinda deviam organizar-se também. Não era só ele. Tive algumas chamadas por telefone para manter o contacto. Foi para ir visitar a mãe também que está num lar. As duas irmãs não se importam dela. Ele é o mais velho e sente-se dever fazer tudo pela mãe, mas elas não. Já são francesas, já não se importam da família, estão à espera da herança. Isso revolta-o. A médica disse que devia perder 40 kg. Tem muita dificuldade para caminhar. Quase não se move. Passa o tempo sentado no sofá da sala todo o dia. Não tem nem forças nem alento para saír e caminhar lá fora. 

Aguardo o fim do confinamento para relançar as consultas. Espero que se encontre bem. 

* Nota : Eu penso que a noção do « Emigrante » não é suficientemente tomada a sério nos seus significados subjacentes tanto em Portugal como para os responsáveis nas comunidades portugueses residentes no estrangeiro. Daí um sentimento de perca de pertença ao povo português. Falta de consideração e de responsabilisação por esta população. É necessária uma informação do que essa palavra engloba como significações tanto em Portugal como junto dos próprios Portugueses residentes no estrangeiro. 

Conclusão 

A epidemia trouxe-nos a oportunidade de refletirmos sobre a nossa condição de cidadãos portugueses. Se vivemos longe do nosso país, por alguma razão será. Tomar consciência dissso, corrigir o que até agora foi mal dito e decidir-se pela escolha do seu futuro está entre as nossas mãos. De um dia para outro já por cá não andaremos. – deixando tudo e sobretudo todos de quem gostamos. A epidemia consciencializou o facto de sermos de onde não vivemos, de estarmos onde não há correspondência com o que somos e talvez com o que desejamos vir a ser que é também um dia sermos reconhecidos na plenitude por Portugal e pelo povo que não fugiu à ditadura. 

A pandemia ambém nos fez ver, psicológicamente, que o que nos resta de vida a mais do que o COVID nos deixa sobreviver nos pertence, como nunca tivemos tão claramente esse sentimento. A tomada de consciência a que nos levou este virus é que possuímos a nossa vida, dela somos dependentes e dela devemos cuidar. 

E socialmente chegamos à conclusão que da maneira de vivermos somos verdadeiramente nós que a decidimos e que se há quem não queira a nossa harmonia na simplicidade e na sobriedade, que nos impõe a aceitação da perversidade, podemos recusar. Há que o demonstrar e desmascarar explicitanto-o sem descanço. 

A psicologia e a psicanálise são eficientes quando tratam não só o indivíduo mas também um povo, uma civilisação, a humanidade num vir a ser melhor uns para os outros. 

A psicanálise mais precisamente e especificamente pode e deve ajudar a esclarecer as motivações inconscientes que estão subjacentes aos nossos atos, nossos desejos no movimento mesmo da humanidade. 

António de Lima NOGUEIRA, 

Jornada Social – 12 de Junho de 2021